Introdu��o
A compreens�o dos fundamentos cognitivos e neurol�gicos do processamento da m�sica avan�ou de maneira substancial nas �ltimas d�cadas. A percep��o e as dimens�es afetivas da m�sica t�m recebido muita aten��o, enquanto que a organiza��o cognitiva do conhecimento musical tem sido menos amplamente estudada. No entanto, os trabalhos avan�am. O conhecimento da m�sica � multidimensional, envolvendo objetos abstratos (composi��es, notas), emo��es, fontes f�sicas (instrumentos) e s�mbolos (nota��o musical). Cada uma dessas dimens�es da m�sica poderia ser considerada para transmitir "significado" para al�m das caracter�sticas puramente perceptuais dos sons e nota��es que a comp�e. Alguns autores prop�em que a m�sica constitui um dom�nio distinto de conhecimento n�o-verbal, mas divide certas caracter�sticas organizacionais cognitivas com outros sistemas cerebrais conhecidos1. Paralelamente tem havido um crescente n�mero de estudos explorando as rela��es entre m�sica e dem�ncia, e como a primeira poderia beneficiar pacientes, cuidadores e familiares, atrav�s do desenvolvimento de protocolos de tratamento com metodologia bem estabelecida e com resultados bem estudados e discutidos. Sendo assim, � importante chamar a aten��o para a musicoterapia como forma de tratamento n�o farmacol�gico, que quando corretamente bem aplicada e orientada pode auxiliar muitas vezes sensivelmente o tratamento cl�nico.
C�rebro e m�sica
Os primeiros relatos afirmavam que a m�sica seria predominantemente de uma atividade do hemisf�rio direito, enquanto a linguagem do hemisf�rio esquerdo. Isso � atualmente considerado uma simplifica��o, em parte por causa da natureza distribu�da de mecanismos de processamento especializados atuando em atributos musicais individuais descritos neste texto (Figura 1) 2. Sabe-se agora que a audi��o da m�sica, performance e composi��es envolvem regi�es ao longo do c�rebro, bilateralmente, e no c�rtex, no neoc�rtex, e no paleo e neocerebelo. No entanto, deve-se lembrar que efeitos de lateralidade de fato existem. Devemos salientar que o ser humano � a �nica esp�cie capaz de sincronizar movimento ao som. A conex�o entre m�sica e movimento mostra-se em estudos de percep��o visual de apresenta��es musicais. Assistindo-se a uma performance musical, mesmo com o som desligado, transmite-se uma grande quantidade de informa��es estruturais e emocionais, refor�ando conex�es evolutivas entre m�sica e movimento. Al�m disso, lembramos que a m�sica representa uma forma din�mica de emo��o, sendo as emo��es consideradas essenciais, se n�o o prop�sito da m�sica e a raz�o para que a maioria das pessoas relatem dispensar grandes per�odos de tempo ouvindo m�sica. O estudo neuroanat�mico dos fundamentos das emo��es ligadas � m�sica � uma �rea de foco particularmente recente. Tamb�m sabemos que o processamento da m�sica divide alguns dos circuitos relacionados � linguagem, al�m de envolver circuitos neurais distintos.
- Motor cortex = C�rtex motor
Movimento, dan�ar, tocar um instrumento
- Sensory cortex = C�rtex sensitivo
Retorno t�til de tocar um instrumento
- Auditory cortex = C�rtex auditivo
Primeiros est�gios de ouvir sons, percep��o e an�lise de tons
- Prefrontal cortex = C�rtex pr�frontal
Cria��o de expectativas
- Cerebellum = Cerebelo
Movimentos e tamb�m envolvido em rea��es emocionais
- Visual cortex = C�rtex visual
Leitura da m�sica, observa��o da performance de um movimento
- Corpos callosum = Corpo caloso
Conec��es entre os dois hemisf�rios
- Hippoccampus = Hipocampo
Mem�ria musical, experi�ncias musicais, e contextos
- Nucleus accumbens = N�cleo accumbens
Rea��es emocionais � m�sica
- Amygdala = Corpo amigdal�ide
Rea��es emocionais � m�sica
- Cerebellum = Cerebelo
Movimentos e tamb�m envolvido em rea��es emocionais
M�sica e doen�a de Alzheimer
Atualmente sabemos do papel que a m�sica representa nas dem�ncias, sendo mais profundamente estudada na doen�a de Alzheimer. Observou-se efeitos relacionados � redu��o dos sintomas comportamentais e psicol�gicos, por�m tem-se constatado que v�o muito al�m deles. Individualmente a prefer�ncia musical � mantida ao longo do processo de dem�ncia. E procurar sustentar uma conex�o musical e interpessoal ajudaria a valorizar quem � a pessoa e prolongaria a sua qualidade de sua vida 3.
MUSICOTERAPIA NAS DEM�NCIAS
A m�sica tem existido em todos os tempos, como uma forma de express�o da humanidade. Os relatos hist�ricos mostram que em todas as culturas a m�sica tem sido utilizada para a comunica��o, entretenimento, express�o e catarse emocional. M�sica e terapia t�m estado vinculadas de maneira insepar�vel, e em todas as �pocas t�m sido empregadas segundo os conceitos, cren�as e pr�ticas vigentes.
Atualmente a musicoterapia � uma realidade, e consiste na utiliza��o de interven��es musicais cl�nicas baseadas em evid�ncias, realizadas por um musicoterapeuta qualificado, com a finalidade de estudar a intera��o som/ser humano e, atrav�s de uma rela��o terap�utica, atender �s suas necessidades f�sicas, cognitivas, emocionais e sociais, promovendo-lhe melhor qualidade de vida4. � um tratamento n�o farmacol�gico que se integra a outras disciplinas que se ocupam da preven��o, tratamento, habilita��o ou reabilita��o dos pacientes neurol�gicos em geral, e dos portadores de dem�ncia, em particular. Esta popula��o requer um acompanhamento multidisciplinar devido � complexidade de suas necessidades, o que leva o musicoterapeuta a atuar junto a m�dicos neurologistas, neuropsic�logos, fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais, enfermeiros, fonoaudi�logos, entre outros profissionais. A nossa inten��o, neste artigo, � de apresentar o papel da musicoterapia com esses pacientes.
Normalmente as altera��es cognitivas n�o constituem as �nicas manifesta��es capazes de provocar o sofrimento nos pacientes e cuidadores. Dist�rbios emocionais tamb�m s�o observados concomitantemente como altera��es do humor, del�rios, alucina��es, apatia, irritabilidade, ansiedade, agressividade verbal e f�sica, ins�nia. Os d�ficits neuropsicol�gicos e os sintomas neuropsiqui�tricos representam desafios cl�nicos significativos para os m�dicos e cuidadores. Observamos, na pr�tica cl�nica, que os pacientes com dem�ncia sofrem, em fun��o das diversas altera��es em curso e, consequentemente, os familiares ou o familiar respons�vel, que muitas vezes se desanimam por se sentirem limitados nos cuidados, n�o sabendo como ajud�-los melhor, al�m de n�o possu�rem todas as condi��es para lhes promover o bem-estar, at� porque acabam desenvolvendo cansa�o e estresse, por lidarem com as constantes altera��es cognitivas, emocionais e comportamentais deles.
A musicoterapia pode contribuir n�o apenas para minimizar os sintomas psicol�gicos e comportamentais da dem�ncia, mas tamb�m para estimular a mem�ria para fatos e eventos e as diferentes formas de express�o (verbal e n�o verbal). H� v�rias refer�ncias, na literatura, que relatam, por exemplo, o fato de pessoas com doen�a de Alzheimer e dist�rbios relacionados (DADR) que, apesar da afasia e do comprometimento da mem�ria, s�o capazes de continuar a cantar antigas can��es e a dan�ar ao som de m�sicas familiares5.
As pessoas idosas, que mant�m um envelhecimento normal, assim como as portadoras de dem�ncia, t�m se beneficiado de atividades musicais estruturadas, mesmo nas fases mais avan�adas da doen�a. As interven��es musicoterap�uticas t�m sido realizadas inclusive em um contexto cognitivo-comportamental, tanto quanto psicoterap�utico, por propor melhora e manuten��o das habilidades cognitivas, f�sicas e emocionais, do comportamento social, das habilidades da linguagem expressiva e receptiva, redu��o da ansiedade, manuten��o da fun��o de mem�ria e aumento da autoexpress�o criativa6.
Poder�amos tomar emprestadas as considera��es de Oliver Sacks7: �A resposta � m�sica, em especial, � preservada, mesmo quando a dem�ncia est� muito avan�ada. Mas o papel terap�utico da m�sica, na dem�ncia, � bem diferente daquele para os pacientes com dist�rbios do movimento ou da fala. A m�sica que ajuda pacientes parkinsonianos, por exemplo, tem que possuir um car�ter r�tmico, firme, mas n�o precisa ser familiar ou evocativa. Para os af�sicos, � crucial que haja can��es com letras ou frases e entona��o, al�m de intera��o com o terapeuta. O objetivo da musicoterapia para as pessoas com dem�ncia � bem mais amplo: atingir as emo��es, as faculdades cognitivas, os pensamentos e mem�rias, o self sobrevivente desses indiv�duos, para estimul�-los e faz�-los aflorar. A inten��o � enriquecer e ampliar a exist�ncia, dar liberdade, estabilidade, organiza��o e foco.
Antes de se iniciar o processo terap�utico � essencial a elabora��o de uma anamnese, em que sejam colhidos os dados de identifica��o do paciente, sua hist�ria cl�nica e, sobretudo sonoromusical, fazendo parte desta, todas as informa��es relacionadas � sua cultura e a de seus ancestrais, aos sons ambientais com os quais conviveu e ainda convive, m�sicas de sua prefer�ncia e � cultura musical (se houver). Em seguida ocorrem as seguintes etapas: uma observa��o das suas possibilidades f�sicas, cognitivas, motoras, de express�o e intera��o com os instrumentos musicais e com o terapeuta, o processo musicoterap�utico propriamente dito, avalia��es peri�dicas do processo e a alta.
A musicoterapia consiste na nossa capacidade de escuta e decodifica��o de uma mensagem sonoromusical e na produ��o criativa, reprodu��o e improvisa��o livre do indiv�duo com quem interagimos. � considerada uma atividade expressiva, por envolver uma experi�ncia sonoromusical vivenciada pelo terapeuta e seu paciente (ou pacientes), com objetivos n�o musicais. � nesse momento que o paciente com dem�ncia pode ter a sua aten��o ativada, pode experimentar as poss�veis formas de express�o e comunica��o utilizando o corpo, o movimento, as palavras, o canto, os instrumentos musicais e/ou material sonoro, colocados � sua disposi��o, para expressar-se livremente. O processo terap�utico ocorre em um contexto n�o verbal, que consiste na intera��o din�mica de infinitos elementos que configuram c�digos, linguagens e mensagens que impactam e estimulam o sistema perceptivo global do ser humano e permitem que este reconhe�a o mundo que o cerca, seu ambiente e o outro ser humano, com quem tem que se comunicar8. A musicoterapia ceptiva, que consiste em promover a audi��o musical � quer seja da hist�ria sonoromusical do indiv�duo, quer seja desconhecida � � tamb�m empregada com fins terap�uticos, para tratar de problemas motores e emocionais.
O termo musicoterapia n�o parece claro para os que desconhecem a especialidade, pois pode significar o uso simples da m�sica com o objetivo de recrea��o. No entanto, no campo da medicina, utiliza as influ�ncias musicais, como os efeitos psicol�gicos e neurofisiol�gicos da m�sica, bem como os conhecimentos da neuroci�ncia da m�sica na promo��o da sa�de. Os par�metros sonoros e musicais (ritmo, melodia, harmonia, dura��o, frequ�ncia, entre outros), separadamente, podem tamb�m se converter em elementos importantes tanto para o emprego de t�cnicas espec�ficas para a promo��o de tratamento neurol�gico, como para avalia��o diagn�stica, especialmente das fun��es corticais superiores.
O alvo das pesquisas, em musicoterapia, � o c�rebro, pois tudo o que os musicoterapeutas fazem �, em sua ess�ncia, modificar as fun��es das estruturas biol�gicas espec�ficas do corpo humano9. Os dist�rbios de comunica��o, como a afasia, por exemplo, podem ser tratados com musicoterapia com a finalidade de utilizar a plasticidade funcional do c�rebro, de forma a compensar as capacidades de processamento perdidas devido � les�o ou outro comprometimento cerebral.
Finalizando, conv�m ressaltar que as pesquisas sugerem que o processamento musical, que est� preservado na doen�a de Alzheimer, por exemplo, pode ocorrer em diferentes partes do c�rebro, se comparado aos mecanismos lingu�sticos familiares. Al�m disso, essas regi�es podem ser as �ltimas a se deteriorarem no curso da doen�a. Assim sendo, a musicoterapia, que depende menos do processamento verbal, pode oferecer uma abordagem �nica para acessar o conhecimento armazenado e as mem�rias que controlam certos comportamentos. Ela pode promover a abertura de canais de comunica��o nos pacientes com dem�ncia, quando os sintomas psicol�gicos e comportamentais instalados impedem sua percep��o da realidade e, neste caso, a m�sica funciona como um objeto intermedi�rio da rela��o terap�utica.
Refer�ncias bibliogr�ficas
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2. Levitin DJ, Tirovolas AK. Current Advances in the Cognitive Neuroscience of Music. Ann NY Acad Sci 2009;1156:211�231.
3. McDermott O, Orrell M, Ridder HM. The importance of music for people with dementia: the perspectives of people with dementia, family carers, staff and music therapists. Aging & Mental Health 2014;18:706�716.
4. Correia, CMF. Musicoterapia e dem�ncia, uma nova fronteira na interven��o cl�nica. In: Silva et al. (Eds.). Dem�ncia. Uma quest�o multiprofissional. S�o Paulo: LMP Editora; 2013, p.129-40.
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6. Wagner, G. Musicoterapia integrativa e reabilita��o neurol�gica. In: Nascimento, M. (Ed.). Musicoterapia e a Reabilita��o Neurol�gica. S�o Paulo: Memnon; 2009. p. 306-31.
7. Sacks, O. Alucina��es musicais. S�o Paulo: Companhia das Letras, 2007.
8. Benenzon, RO. La producci�n sonor-musical. In: Benenzon, R.O. (Ed.). La Nueva Musicoterapia. Argentina: Lumen; 1998. p. 77-83, 1998.
9. Taylor, DB. Biomedical Foundations of Music as Therapy. Saint Louis: MMB Music, Inc.; 1997.
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